Maria de Maria Maria
 



Contos

Maria de Maria Maria

Eliana Schueler


Maria se chamava Maria porque não podia ter outro nome. Negra retinta, gorda, dentes e língua afiados. Era uma mulher grande, peituda, no sentido mais amplo da palavra. Porta-bandeira da escola de samba de coração fizesse chuva ou sol. Mulher do povo, de raça e gana. Domingos e terças de carnaval estava lá na hora marcada para mostrar a quem quisesse ver o que gostava de fazer: ser mulher para homem nenhum botar defeito, como se dizia. Sambar? Sambava, mas estar com os pés apoiados naquele salto que a fazia maior ainda, sapateando sucessivamente não era bem o que queria mostrar. Isso era fácil, qualquer mocinha fazia. Dançava para os homens, com outras intenções. Dançava de jeito a mostrar como mexer uma panela sem deixar o angu encaroçar, como clarear e torcer a roupa suada que lhe caísse nas mãos, como varrer um chão até esfolar o pano que ia para corda impecavelmente limpo parecendo fantasma a balouçar no vento.

Dançava para exibir-se mulher de carne e cama. Com a bandeira da escola entre braços rodopiava remexendo a noite, estapeando sem decência alguma, de cara lavada, a plateia que tanto aplaudia como rangia dentes. Nas ancas largas, o molejo maledicente mexendo com os pensamentos, propositadamente atiçando a sanha das despeitadas e invejosas, das ciumentas, das alcoviteiras e dos homens alheios. Ela sabia e quanto mais sabia, mais fazia. Exausta, brilhante de suor e purpurina, lá no finalzinho da avenida esticava os braços, distribuía marcas vermelhas do batom retocado minuto a minuto, olhares insinuantes, piscadelas, sussurros e bilhetinhos. Era a musa dos gays, das cabeleireiras, das manicures da escola e dos machos dispostos a quebrar suas firmezas, abaixar seu facho e domá-la como a um marruá nos confins do matagal. Maria dos dentes brancos a distribuir sorrisos negros, incansáveis, bordados de uma alegria sem dono. De olhos de jabuticaba que caíam, subiam, passeavam, convidavam, piscavam, mostravam, viam o que mais ninguém via. E diziam. O que ela queria, diziam, combinando boca e sobrancelhas. Menosprezava, ignorava, zombava. Maria das mãos grandes, unhas compridas e vermelhas, dos lenços em nós coloridos cobrindo a cabeça africana, orelha adornada com dourados brincos de argola. De nariz ao vento, diaba por convicção e desafio.

Última noite de desfile, aquela. Caminhou extasiada para encher-se de cheiro, trocar de suor e brincadeira. Maria que podia ser Maria Amélia, Aparecida, das Graças, de Jesus, mas, nunca das Dores, sumiu sem deixar pegadas. Não voltou. Era o jeito dela, pensou Pedro que desistiu de esperar. Não havia mais onde procurar, tanta gente vasculhou. Chorava, tanto às escondidas se ria, a cidade. Até que o choro transbordou e ao carregar das águas, pedaços e pontas surgiram de quem gostava do mal feito. Mas a quem acusar? Em que e em quem pensar? Quem a tinha por morta, àquela altura justificava qualquer macabro feito. Merecia! Safada! A população dividida entre admiração e nojo. Os enredos surgiam, tomavam conta dos cantos e a imaginação fluía por trás das portas, nas mesas dos bares, no arrependimento de quem não experimentou. Trocou de marido, mudou-se para outro país, escondida, com certeza. Ainda ria de todos. Maria era de brincadeiras.

Não daquela que a mulher do vizinho, enciumada e transtornada de ódio lhe propôs ao chegar do desfile da escola: uma cerveja bem gelada. Com beladona. Ninguém para contar a história. Todo mundo na rua. Há muito vinha cultivando a mudinha em casa. Uma folha bastaria.

Maria se contorceu, babou, vomitou, espumou diante dos olhos saciados de vingança e crueldade. Se debateu, rasgou a roupa espalhando pérolas e missangas pelo chão molhado de cuspe, esfregou o ventre como que tomada por mordidas e picadas apimentadas. E então, embaçaram os olhos sob um véu quase nuvem e tombou para o lado, rosto inerte.

Dali a arrastou a vizinha pelos pés descalços, pernas desnudas para um quartinho nos fundos do quintal. Por cima, um lençol florido e um estoque inteiro de quinquilharias. Trancada lá ficou, sem vida, sem unhas vermelhas, de fantasia rasgada e sorriso apagado. Não viu, não ouviu o suspiro de alívio, os olhos triunfantes misturados ao sorriso gelado da amiga de infância que pensou conhecer.

***

Eliana Schueler , professora SEEDUCRJ. Vivendo a aposentadoria, finalmente, entre duas grandes paixões: ler e escrever.

 

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